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Áreas de preservação permanente e atualizações sobre o tema 1010

5 de abril de 2024 - Artigo

No dia 28/4/2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou três recursos especiais nos quais se discutiu a distância a ser mantida dos cursos d’água localizados em área urbana consolidada, definido a prevalência do Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012).

 

A tese firmada tem a seguinte redação:

 

Na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.

 

Contra os acórdãos, foram opostos embargos de declaração, julgados em 23/11/2022, cujas decisões foram publicadas em 28/06/2023.

 

Uma das omissões levantadas pelos embargos de declaração foi no sentido da necessidade de adaptar a tese fixada às circunstâncias dos três casos concretos sob julgamento, pois neles não haveria obra iniciada ou pronta, de modo que não teria sido enfrentada a hipótese de possível pedido demolitório em Área de Preservação Permanente (APP), nas quais ocorreu a perda da função ambiental pela urbanização.

 

O STJ, no julgamento, consignou que o fato de todos os processos selecionados como representativos da controvérsia não veicularem sobre pedido demolitório em APP em área urbana consolidada não conduz à existência de omissão, pois não é o tipo de ação ou pedido nela contido que definirá ou não a aplicação do art. 4º do novo Código Florestal. Ainda, destacou que a Tese 1010 se aplica a todo tipo de ação judicial, inclusive demolitórias, o que não é surpresa, pois o STJ já se manifestou sobre a necessidade de demolir aquilo indevidamente construído sobre APP.

 

Acerca da antropização como hipotética causa da perda da função ambiental nas áreas urbanas consolidadas, a Corte Superior frisou que, como ação humana sobre o meio ambiente, a antropização representa fenômeno social que naturalmente acompanha a civilização, rememorando que, vilas e cidades, desde a idade antiga, foram iniciadas as margens dos rios, por questão de sobrevivência e em razão do desenvolvimento socioeconômico da sociedade. Apesar disso, afirmou ser dever da sociedade sempre buscar reescrever esse fenômeno.

 

E isso, mediante o entendimento de que a antropização pode acarretar perda aparente da função ambiental em APP. Porém, permanece a função ambiental e o dever de recuperação in natura quando ela possa preservar recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas[1]; de modo que, havendo um desses elementos a justificar a proteção ao meio ambiente em APP ou ainda, não existindo um deles e sendo possível a recuperação in natura da área, não se pode dizer que ocorreu o seu aniquilamento como efeito da antropização.

 

A Corte finalizou destacando que o exame de eventual perda absoluta e irreversível in natura da função ambiental decorrente da antropização em APP em área urbana consolidada está contido no campo das situações pontuais que devem ser analisadas caso a caso:

 

O exame de eventual perda absoluta e tecnicamente irreversível in natura da função ambiental decorrente de suposta antropização em Área de Preservação Permanente de qualquer curso d´água perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, está contido no campo de situações pontuais, que não se choquem com o regime legal e regulamentar. São hipóteses que devem ser analisadas, caso a caso (mediante indenização e compensação ambiental), pelas instâncias ordinárias, à luz da Súmula 613/STJ (vedação do fato consumado) e nos estritos limites e disciplina do Código Florestal, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981) e dos princípios reitores do Direito Ambiental (entre os quais, proibição de retrocesso, interpretação com base na máxima in dubio pro natura, caráter in re ipsa do dano decorrente de ocupação ilícita de Área de Preservação Permanente, e impossibilidade de ampliação judicial das exceções legais, que reduzam o patamar de proteção do meio ambiente).

 

Outra omissão alegada foi a não abordagem da modulação dos efeitos do acórdão. A Corte, todavia, ressaltou que não houve omissão, mas sim que a pretensão de modulação foi apresentada da sessão de julgamento de 28/04/21 e foi rejeitada, mediante o entendimento de não ter havido surpresa ou guinada jurisprudencial a justificar a modulação dos efeitos do acórdão, pois a Corte já havia apreciado a disciplina da extensão das faixas marginais a cursos d’água no meio urbano[2] e decidiu que o antigo Código Florestal é que deveria disciplinar a largura mínima das faixas marginais ao longo dos cursos d’água em área urbana – as APPs.

 

Mais uma omissão foi levantada: o julgamento não teria observado a ocorrência da perda da função ambiental no local. O STJ, por sua vez, respondeu no sentido de que eventual perda de função ambiental não foi tratada no acórdão proferido pela Corte de origem, o que denota falta de prequestionamento e impõe o reexame de fatos e provas, vedado em recurso especial[3].

 

Acerca da Lei Federal nº 14.285/2021, sancionada em 29/12/2021 e que alterou disposições do Código Florestal e da Lei de Uso e Ocupação do Solo e se propôs a “definir e aprimorar o conceito de áreas urbanas consolidadas, para tratar sobre as faixas marginais de curso d’água em área urbana consolidada e para consolidar as obras já finalizadas nessas áreas”, que inclusive está tendo sua constitucionalidade discutida na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 7.146, o STJ consignou que eventual manifestação do Colegiado a respeito da Lei, neste momento, ocasionaria indevida ampliação da tese inicialmente admitida a julgamento[4].

 

Caso se manifestasse, estaria a decidir fora dos limites do objeto litigioso e da questão inicialmente identificada e submetida a julgamento, violando o disposto no acórdão.

 

Diante disso, tem-se que:

 

  • O antigo Código Florestal é que deve disciplinar a largura mínima das faixas marginais ao longo dos cursos d’água em área urbana, não a Lei de Uso e Ocupação do Solo.

 

  • Na vigência do Novo Código Florestal, aplica-se trinta metros de APP, tanto em área rural quanto em área urbana, consolidada ou não consolidada.

 

  • É necessário demolir edificação construída em APP.

 

  • O exame de eventual perda absoluta e tecnicamente irreversível in natura da função ambiental decorrente de suposta antropização em Área de Preservação Permanente de qualquer curso d´água perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada deve ser analisado pontualmente.

 

O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC), considerando a premissa de que eventual perda da função ambiental da APP deve ser analisada caso a caso, começou a adequar seus acórdãos desde o julgamento do STJ.

 

  1. Da inaplicabilidade do Tema 1010

 

O TJSC, em seus recentes julgados, vem fazendo esclarecimentos acerca dos efeitos e da delimitação do Tema 1010 ao analisar os casos concretos. O Tribunal de Justiça Catarinense destaca que a controvérsia analisada pelo STJ diz respeito unicamente ao lapso temporal de 2012[5] a 04/2021[6].

 

Ressalta ainda que, para verificar se incidirão sobre os casos concretos os efeitos do Tema 1010, deve-se analisar se eles se adequam ao lapso temporal citado, bem como, deve-se confirmar a existência ou não de função ambiental sobre a área objeto da demanda.

 

Os casos, para serem afetados pelo Tema 1010, devem ser posteriores à promulgação do Novo Código Florestal. Ainda, as áreas de preservação permanente devem apresentar a função de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, etc.

 

Isso pois, como bem vem sendo destacado pelo TJSC, “não basta a mera existência de elemento hídrico para que incida o regime das APPs em toda extensão prevista na legislação (in casu 100 metros). É preciso que a área, comprovadamente, mantenha sua função[7]”.

 

Complementa ainda que, além (i) do enquadramento ou não dentro do Tema 1010 e (ii) da necessária caracterização do elemento hídrico como curso d’água natural com função ambiental ativa, a correta aplicação da decisão do STJ também exige uma adequação ao caso concreto, sobretudo nos empreendimentos construídos, licenciados e autorizados em Santa Catarina, Estado no qual a ocupação e o desenvolvimento de praticamente todas as cidades se deu a partir de vales e margens de rios.

 

E diz isso pois, a aplicação de forma genérica, sem se atentar para as especificidades de cada caso concreto, promoveria a “destruição” de boa parte de cidades como Blumenau, Itajaí, Joinville, Lages, Balneário Camboriú, Joaçaba, Tubarão, dentre outras.

 

O Tribunal ainda destacou que o julgamento do Tema 1010 apenas decidiu pela prevalência do Código Florestal de 2012 em relação à Lei de Parcelamento do Solo Urbano, não excluindo, ampliando ou alterando os critérios para que ocorra a caracterização das áreas de preservação permanente, nem tampouco retirando das instâncias ordinárias a possibilidade de estabelecer o distinguishing a partir da análise das especificidades da localidade em que se pretende edificar.

 

O distinguishing (distinção, em tradução livre) consiste em uma técnica que pode ser utilizada pelos tribunais para afastar a aplicação de um precedente de natureza obrigatória ao identificarem uma distinção material relevante e indiscutível, ou seja, particularidades que diferem o caso concreto da jurisprudência consolidada.

 

Aliás, o CNJ, Conselho Nacional de Justiça, por meio da Recomendação 134/2022, cita sua utilização excepcional: “poderá o juiz ou tribunal, excepcionalmente, identificada distinção material relevante e indiscutível, afastar precedente de natureza obrigatória ou somente persuasiva, mediante técnica conhecida como distinção ou distinguishing”[8].

 

Uma dessas hipóteses ocorreu em um caso julgado recentemente, em um Mandado de Segurança[9] em que a ação mandamental foi impetrada em face do Município de Gaspar, que se recusou a emitir a consulta de viabilidade nos termos da Lei de Uso e Ocupação do Solo sob o entendimento de que deveria ser considerada como APP a distância de 100 (cem) metros lindeiros à borda do leito regular do rio existente nas proximidades do local.

 

Em sentença, o juízo de primeira instância concedeu a ordem. Isso pois, apesar de compreender que o imóvel estava inserido em APP, concluiu que a área não conservava mais essa característica, considerando inclusive que no local havia intensa urbanização, asfalto e diversos outros imóveis localizados ao lado e nas cercanias do local em que estava o imóvel em discussão.

 

O TJSC, no julgamento do recurso, manteve a sentença.

 

No mesmo sentido, foi o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), ao tratar de ação de procedimento comum[10] ajuizada pelos autores em face do Município de São Mateus do Sul, requerendo, entre outros, a expedição de alvará de conclusão de obra e habite-se, recusados pelo Município. No caso, os autores celebraram com a Caixa Econômica Federal contrato aquisição de um imóvel e construção de unidade familiar.

 

O Município chegou a expedir alvará de construção, todavia, quando os autores protocolaram na Prefeitura um projeto de ampliação do imóvel, o órgão municipal ambiental emitiu parecer opinando pelo indeferimento do pedido, considerando a área não edificável por ser área de preservação permanente. Isso impediu aos autores a obtenção de alvará de conclusão da obra e habite-se e, consequentemente, a liberação da última parcela do financiamento.

 

Em sentença, o juízo considerou as informações prestadas pelo perito, de não haveria ganho ambiental na retirada da obra dos autores do local, pois (i) o imóvel localiza-se dentro do perímetro urbano de uma cidade consolidada, (ii) o tamanho da área do imóvel é pouco representativo dentro do atual contexto, (iii) as obras no entorno do imóvel já estavam consolidadas, o que não permite uma recuperação ambiental natural, (iv) houve melhora na situação do local, pois a área da lide estava totalmente degradada antes das obras, (v) ocorreram ganhos de cunho ambiental e paisagístico.

 

Ao final, concluiu que apesar de o imóvel estar situado em área de preservação permanente, trata-se de área consolidada, inexistindo ganhos ambientais decorrentes da sua demolição e determinou a condenação do Município para realizar nova análise das condições técnicas necessárias à emissão do alvará de conclusão de obra e habite-se no imóvel objeto da controvérsia, observando que no caso o fato de o imóvel estar em APP não é óbice a sua emissão.

 

O TRF4 manteve a sentença.

 

Com isso, é evidente que o Judiciário vem buscando se adaptar cada vez mais à realidade fática e histórica brasileira envolvendo as áreas de preservação permanente.

 

Conclui-se, portanto, que esse cotejo entre a legislação e o contexto histórico dos imóveis, de seus corpos hídricos e de suas respectivas particularidades são imprescindíveis para a boa tutela do Direito.

 

É com base nessas premissas que a Administração Pública e o Poder Judiciário podem agir com razoabilidade e trazer decisões que corroborem com o desenvolvimento das cidades e garantindo segurança jurídica aos seus cidadãos e jurisdicionados.

 

Biana Cristina Stoinski.

 

[1] Código Florestal. Art. 3º, inciso II.

[2] RE 1.518.490/SC, de 15/10/19.

[3] Súmula 7 do STJ.

[4] Art. 1036 caput e inciso I do 1037 do CPC.

[5] Promulgação do novo Código Florestal – Lei Federal nº 12.651/2012.

[6] Julgamento do Tema 1010.

[7] Acordão 0303827-66.2016.

[8] Art. 14, caput da Recomendação CNJ nº 134/2022.

[9] TJ-SC – APL: 03038276620168240025, Relator: André Luiz Dacol, Data de Julgamento: 06/07/2023, Quarta Câmara de Direito Público).

[10] TRF-4 – AC: PR 5003132-81.2013.4.04.7014, Relator: Rogerio Favreto, data de julgamento: 15/02/2022, Terceira Turma.

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